Marta Morais da Costa
Em tempo de redes sociais, a felicidade mora em todos os tempos e lugares da vida. Um historiador do futuro ao olhar para este começo atormentado do século 21 e ao estudar suas fontes documentais visuais estará fadado a um trabalho insano, destemperado e sem conclusão. Haja fotos inumeráveis e vidas com registros de costumes e modas e poses e caras e caretas!
Poderá estudar cenários (cenográficos muitas vezes), trilhas musicais, dancinhas, ambientes, objetos e um sem número de marcas e testemunhos dos tempos de hoje. Irá se deleitar com a cínica, narcísica e patológica busca da felicidade contínua e com fios desencapados.
Terá ainda vasto material de memórias pessoais e coletivas em publicações que tangenciam o infinito. Nesta festa de exibições, quero expor minha parte no partido dos leitores compulsivos.
Passeando pela internet, cheguei a uma citação que gostaria de tomar como ponto de partida para uma rápida reflexão:
“Não sou capaz de dizer que obra ou que autor inoculou em mim o vício da leitura, porque nasci entre livros, milhares deles. Meu pai tinha estantes espalhadas por várias partes da casa, inclusive na garagem.”
ALBERTO MUSSA, escritor brasileiro
Isso é que é nascer em berço esplêndido! No paraíso dos eleitos leitores! Algo com que eu nunca sonhei, nem em minhas noites mais perfeitas e com iluminação onírica.
Não sei bem o que é uma iluminação onírica, mas gostei da combinação. Penso ser uma expressão que expande seus significados. Talvez algo contrário à escuridão dos pesadelos e suas dores implícitas. Talvez sonhos que de tão lindos vêm com iluminação de primeira, como se fosse um toque de Beto Bruel e sua genialidade com refletores, gelatinas e painéis de controle. Sonhos que podem parecer um cenário de Barbie, visitado pelo Ken dos livros e da leitura. Enfim, uma iluminação espiritual em que a claridade do paraíso vem acompanhada pela musicalidade dos cânticos angélicos.
Seja como e o que for, a declaração de Alberto Mussa sobre uma casa-estante (ou seriam estantes-casa?) desabou sobre minha história e abriu com cunhas de inveja e de descoberta uma percepção de felicidade tipo Instagram. É possível alguém nascer entre livros? A felicidade mora em milhares de livros? Então é possível ser inoculado pelo vício da leitura por meio da biosmose com as estantes?
Em minha profissão, tão livresca e livreira, como a dos escritores, encontrei não-leitores em famílias abastadas e de biblioteca doméstica razoável, além de um cartão de crédito generoso que aceitava também a compra de livros. Encontrei leitores famintos e desejosos, olhando com cobiça para as vitrinas de antigas livrarias (hoje, são telas digitais), com os bolsos vazios, a cabeça a inferir narrativas na impossibilidade de as ler concretamente. Encontrei leitores escarrapachados em bancos, poltronas, beirais de janelas, no assoalho das ditas livrarias antigas, absortos viajantes de livros que podiam ler mesmo sem poder adquirir. Encontrei leitores, e a mim mesma, nos espaços de bibliotecas públicas, buscando, encontrando, emprestando, devorando os livros que o bolso vazio não conseguia manter nas tábuas-estantes do domicílio carente de pão, mesmo sonhando com poesia.
É possível uma casa com milhares de livros? Minha infância, como a de muitos leitores, costumava olhar as paredes e encontrar nos cantos mais desprezados dos armários apenas alguma dezena de volumes de uma pobre bibliografia escolar.
Talvez em algum tempo não tão longínquo, eu tenha associado um acervo volumoso com um acervo incomensurável de leituras, atestando “aqui está um leitor” ou “só daqui pode sair um leitor compulsivo”. Acabei aprendendo que ter livros não é ler livros. É apenas um indício de leituras. E indício não é prova, também aprendi.
A pandemia do monstruoso COVID 19 nos ensinou que até o cenário de livros podia ser apenas um pano de fundo cênico a indicar que o protagonista da fala da live exibia somente uma imagem de felicidade contínua, atestada pela quantidade de livros fakes.
Mas, mesmo fakes, as estantes pareciam escorar as falas, decorar a figura humana, anunciar uma iluminação desejosa. Porque ser leitor tem alto grau de feitiçaria potteriana, um incômodo clariceano prestes a irromper em criação, um alumbramento roseano a expandir o sentido das palavras, uma clareza (ou claridade) ítalocalvínica a iluminar o mundo e seus passageiros.
Diversamente de Alberto Mussa, minha infância não teve estantes e milhares era uma conta que eu não sabia fazer. Mas o vício da leitura, ah, esse sim, encontrou casa acolhedora, mimos e consistência.
Não tenho dúvida nesta etapa em que os anos de vida diminuem: a infância que não tive, eu a criei para mim. E milhares passou a ser meu cotidiano.